Nota do Autor:
“Criou Deus as almas masculinas e femininas, e fez estas inferiores àquelas? Eis toda a questão.” (Revista Espírita, jan/1866 – Allan Kardec)
A pergunta pode parecer absurda. E é.
Mas nem por isso deixou de ser feita, ontem e hoje, com novas roupagens.
Ao nos depararmos com a reflexão de Kardec, somos levados a questionar: o que realmente mudou na sociedade? Nós, mulheres, temos voz? Muito já se avançou, mas por que a igualdade plena ainda parece distante?
Se antes a dúvida era se as mulheres tinham alma, hoje o que se questiona, muitas vezes sutilmente, é se elas têm autoridade espiritual.
Podem falar em nome da Doutrina?
Podem ser referências sem parecer “autoritárias”?
Podem ensinar, decidir, liderar, sem pedir licença?
O artigo da Revista Espírita é uma joia doutrinária. Com fina ironia, Kardec desmonta a ideia de uma inferioridade moral ou espiritual feminina, apontando o ridículo de se imaginar que Deus criaria almas de segunda classe. Ele afirma, com todas as letras, que o Espírito não tem sexo, e que o progresso espiritual ocorre ora em corpos masculinos, ora em femininos, conforme as necessidades da alma em evolução.
Mas será que realmente compreendemos essa parte?
Nos bastidores do movimento espírita, a lógica ainda é mais masculina do que evangélica. A fala da mulher precisa ser doce, a firmeza vira "arrogância", a liderança é desconfortável. E a invisibilização do feminino se disfarça de tradição, prudência ou neutralidade doutrinária.
Vale lembrar que, em 140 anos de história da Federação Espírita Brasileira, nenhuma mulher ocupou os cargos de presidente ou vice-presidente. Isso é fato. Num movimento que se fundamenta na igualdade espiritual, esse dado é um reflexo gritante de como a prática ainda não acompanha o discurso.
E o mais grave: não é por falta de mulheres capacitadas. Há inúmeras trabalhadoras espíritas com preparo doutrinário, liderança, dedicação e trajetória para ocupar qualquer cargo. A barreira não é competência; é cultural e estrutural.
Enquanto isso, o Espírito, eterno e além das formas, reencarna onde for mais útil, veste o corpo que for mais pedagógico, ocupa o papel que mais ensina. E faz isso com coragem, humildade e entrega.
O Espírito não usa saia. Nem calça. Ele usa oportunidades.
Evolui tanto em saltos quanto em sapatos gastos.
Chora no silêncio da casa e fala com firmeza no púlpito.
Serve no bastidor e também diante das câmeras.
Porque o que conta, como sempre, é a luz que carrega e espalha.
Então, a pergunta que fica não é mais "as mulheres têm alma?", mas: estamos prontos para enxergar o Espírito por trás dos papéis sociais que ainda teimamos em manter?
Talvez seja hora de ler Kardec com menos reverência e mais coerência.
De parar de citar a igualdade espiritual como um conceito bonito e começar a praticá-la dentro e fora das casas espíritas.
De honrar o legado que diz: não há almas femininas ou masculinas, há Espíritos em aprendizado, e todos merecem voz, espaço e respeito.
Porque, no final das contas, o Cristo também nasceu de uma mulher.
E não pediu autorização a ninguém para isso.
Foi preciso perguntar se as mulheres tinham alma.
Sim, essa pergunta existiu e foi levada a sério por muitos.
Num tempo em que o orgulho masculino se travestia de ciência e religião para justificar o domínio, Allan Kardec respondeu com uma ironia cirúrgica. Mas não para zombar, e sim para despertar.
Mostrou, com a lógica do Espírito imortal, que a alma não tem sexo, que o princípio inteligente é o mesmo, esteja ele num corpo masculino ou feminino.
Mas a pergunta desconcertante nos arrasta para outra mais atual: quantas vezes ainda negamos, com outras palavras, a alma da mulher?
Quando ela precisa provar sua competência duas vezes.
Quando seu corpo é reduzido a vitrine.
Quando sua voz é descredibilizada por ser "emocional".
Quando seu trabalho é invisibilizado e sua espiritualidade, vigiada.
O Espiritismo não é condescendente. É libertador.
E nos convida a desmascarar os resquícios sutis do patriarcado, inclusive nas práticas religiosas.
A igualdade espiritual não se traduz apenas em frases bonitas: ela precisa ser vivida, acolhida e respeitada. O sentimento é que todos somos iguais perante Deus e suas Leis, e que devemos derrubar as barreiras que nós mesmos impomos, compreendendo que, embora haja diferenças biológicas, de alma somos iguais.
A alma não tem gênero. Mas o preconceito, sim.
Que a reflexão sobre a igualdade espiritual nos inspire a construir um mundo onde cada Espírito, independentemente do corpo que habita, encontre seu pleno potencial e reconhecimento.
A Revista Espírita, dirigida por Allan Kardec, é um convite
à reflexão sobre os mistérios da alma humana. Nela, Kardec compartilha
descobertas sobre a comunicação com os espíritos, a vida após a morte e nossa
jornada eterna, sempre unindo coração e razão para compreender o que muitos
consideram inexplicável. Teve sua última edição em abril de 1869. Esta c
rônica foi inspirada no artigo da Revista Espírita de Janeiro de 1866 - As mulheres têm alma?

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