#10 – Quando a Bandeira se Torna Arma

Nota do Autor: Esta crônica, da série Entrelinhas de Luz, busca oferecer uma perspectiva à luz da Doutrina Espírita, e não do movimento espírita, sobre a temática abordada, sem, contudo, minimizar a complexidade e a urgência dos problemas sociais envolvidos. As reflexões aqui apresentadas são inspiradas na obra "Dias Gloriosos", de Divaldo Pereira Franco, pelo Espírito Joanna de Ângelis, especificamente no capítulo "Mudança de Sexo". O objetivo é convidar à compreensão e à caridade, elementos essenciais para o diálogo e o acolhimento, conforme os ensinamentos da Doutrina Espírita.



Era para ser um símbolo de luta, mas virou lança. 
Era para representar dignidade, mas passou a ferir.
E, de ambos os lados, as feridas sangram. 
Quando a bandeira se torna arma, quem a segura esquece o propósito, e quem recebe o golpe só consegue reagir, não ouvir.

Em meio à gritaria das redes, dos púlpitos e dos protestos, o que resta do diálogo, do acolhimento, do Evangelho?

Joanna de Ângelis aborda a transexualidade sob uma perspectiva espiritual. Ela esclarece que a identidade de gênero em desalinho com o corpo físico pode ser um reflexo de experiências reencarnatórias, quando o Espírito retorna em um corpo incompatível com sua essência mais profunda (seu psiquismo). Muitas vezes, isso ocorre como prova ou aprendizado para desenvolver a aceitação e o respeito, ou como forma de reparação moral (entendida como uma oportunidade de aprendizado, não como punição). 

Joanna não condena a cirurgia de redesignação sexual, explicando que a motivação íntima e o sofrimento psíquico são considerados com compaixão pelos Benfeitores espirituais. O Espírito em transição de gênero carrega conflitos legítimos e profundos, que exigem acolhimento, compreensão e caridade da sociedade e das instituições religiosas.

O texto convida a superar o preconceito e a valorizar a dignidade do ser, reforçando que o Espírito não tem sexo, embora experimente diversas tendências afetivas (polaridades afetivas) em sua evolução.

Nesse sentido, alguns trechos da obra de Joanna são centrais para a compreensão: “A mente que se transfere para um corpo em descompasso com o seu estágio evolutivo anterior experimenta doloroso conflito…”; “Não compete à sociedade o julgamento cruel nem a imposição arbitrária do comportamento.”; e “A caridade é o amor em ação, e essa deve ser a tônica do comportamento humano diante dos transexuais.”

Essa mensagem está em profunda sintonia com os princípios espíritas. A pluralidade das existências explica a identificação de gênero incongruente com o corpo biológico. A lei de causa e efeito atua de forma educativa, não punitiva. E o princípio da caridade, essência do Espiritismo, deve ser o norte diante da diversidade das experiências humanas, reafirmando que, sem caridade, não há salvação.

Contudo, a abordagem espírita, mesmo acolhedora, pode gerar ruídos e pontos de resistência na comunidade LGBTQIAP+. É preciso honestidade para reconhecê-los. A ideia de “desalinho” ou “reparo cármico” pode soar como se a transexualidade fosse um erro a ser corrigido ou um sofrimento expiatório, o que conflita com a visão afirmativa da identidade de gênero como expressão legítima do ser.

A interpretação espiritualizada da experiência trans, por sua vez, pode ser vista como espiritualizando demais uma questão que, para a comunidade, é também profundamente social e política. Há ainda a centralidade do binarismo espiritual: a noção de que o Espírito não tem sexo é libertadora, mas o texto ainda fala em “psiquismo feminino em corpo masculino” (e vice-versa), reforçando um modelo binário que não contempla identidades não binárias, agênero ou fluidas.

Por fim, a possível desautorização da autonomia corporal: mesmo respeitando as cirurgias, o “alerta” sobre implicações espirituais pode ser lido como um questionamento moral disfarçado, principalmente por quem não conhece a linguagem espírita.

Apesar dessas possíveis barreiras de interpretação, a mensagem de Joanna revela-se potente por uma razão fundamental: ela não condena, não patologiza e não demoniza a experiência trans. Ela propõe empatia ativa, caridade verdadeira e reforça que o Espírito está acima de rótulos. Ou seja, ela planta uma semente de diálogo, mesmo sabendo que nem todos estão prontos para regá-la. É um convite à compreensão mútua, onde a caridade se torna a ponte.

Para abordar o tema com sensibilidade, especialmente se você, como espírita, deseja compartilhar esse conteúdo, sugiro reforçar que o Espiritismo não exclui ninguém. Apresente as falas de Joanna com contexto doutrinário, sem imposição. Abra espaço para escuta ativa, caso alguém da comunidade trans se sinta desconfortável. E, acima de tudo, lembre que caridade, segundo Kardec, é benevolência e indulgência, não vigilância moral.

Este é um daqueles textos que, dependendo do tom, une corações ou acende fogueiras, não só fora, mas dentro do próprio movimento espírita, onde ainda há desinformação e preconceito velado sobre o tema.

O que Joanna faz aqui é de uma coragem imensa. Ela se posiciona com ternura e lucidez em um terreno onde muitos se calam ou julgam. Contudo, para dialogar com quem vive essa realidade, é preciso mais que boa vontade: é necessária escuta real, humildade e linguagem acessível.

Na questão 200 de O Livro dos Espíritos, Kardec pergunta: “Os Espíritos têm sexo?”. A resposta é clara: “Não como o entendeis, pois os sexos dependem da organização física”. Kardec complementa que reencarnamos ora como homem, ora como mulher, para desenvolvermos todas as potências do ser.

Essa simplicidade foi esquecida por muitos que, em vez de consolo, oferecem julgamento. Não entenderam que o Cristo Consolador não veio uniformizar comportamentos, mas libertar consciências.

O Espírito é assexuado biologicamente, mas possui tendências e histórias emocionais construídas ao longo das encarnações. Um Espírito pode ter vivido muitas vidas como mulher e, ao reencarnar em um corpo masculino por necessidade evolutiva, não apaga sua bagagem afetiva. Ele não "muda de gênero", mas transita por vivências masculinas e femininas para aprender.

O problema surge quando o discurso é tomado por extremos, e a bandeira se torna arma. De um lado, uma militância ferida que transforma a dor em revanche, taxando qualquer explicação espiritual como preconceito e negando que a condição possa ter raízes reencarnatórias. Do outro, grupos conservadores que usam a moral como porrete, recusando-se a enxergar a dor e a dignidade por trás do corpo.

Ambos perderam a ternura. Ambos esqueceram que, sem caridade, não há salvação. Toda bandeira hasteada com ódio deixa de representar o amor.

No meio disso, a proposta espírita fica mal compreendida. O que ela propõe? Compreender que cada um está em um ponto da jornada. Reconhecer a identidade de gênero como uma experiência válida do Espírito. Praticar a caridade real: acolher, respeitar, ouvir com amor. Evitar rótulos, lembrando que ninguém é apenas sua identidade de gênero. E, talvez o mais importante: colocar-se no lugar do outro.

O verdadeiro espírita não é quem decora respostas, mas quem se compromete com o bem. É aquele que se pergunta: "E se fosse comigo?". Estudar Kardec é se libertar do "Espiritismo social" para mergulhar no Espírito. O Cristo não disse: "Ame os que concordam com você". Ele disse: “Amai-vos uns aos outros”. E isso basta.

Estudar este tema à luz da Doutrina é um exercício de humildade. Não para dar respostas prontas, mas para construir pontes de empatia onde o mundo levanta muros.

As bandeiras só nos protegem quando são feitas de compaixão. Quando viram armas, perdemos a paz e nos afastamos dos ensinos de Jesus. A mensagem é um convite à reflexão crítica, mas também um sopro de esperança, pois nos lembra que a salvação, para todos, está na caridade.

Ainda é tempo de abaixar a guarda e abrir o coração. Ainda é tempo de lembrar que o Espírito é maior que qualquer rótulo. Porque, no final das contas, tudo o que importa é o quanto de amor a gente é capaz de oferecer e de receber. Que cada um de nós, ao abaixar a própria guarda e abrir o coração, seja a semente de amor e compreensão que o mundo tanto precisa.



Nesta belíssima obra de Joanna de Ângelis, a veneranda benfeitora nos faz o covite para profundas reflexões. São 29 capítulos abordando temas atuais como: Engenharia Genética, Transplantes de Órgãos, Criogenia de seres humanos, Métodos eugênicos perturbadores, Mudança de sexo, Regressão de memória e outros que “têm sido motivo de controvérsia em diferentes campos de pensamento e da religião. Valioso convite para profundas reflexões, ressaltando o pensamento espírita em seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso, evidenciando os ensinamentos imortais de Jesus.  Autor: Joanna de Ângelis pelo médium Divaldo Franco - Editora Leal.






Nota Final: Esta reflexão não tem a intenção de impor crenças ou invalidar vivências, mas de oferecer, à luz da Doutrina Espírita, um convite ao diálogo respeitoso e à prática da caridade como ensinada por Jesus. Reconhecemos que cada experiência humana é única e merece ser acolhida com empatia, respeito e sem julgamentos.

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